Julia Cummings, funcionária de uma startup de softwares que trabalha remotamente, com base em Los Angeles, afirmou que, em seu trabalho, ela tem acesso a quase tudo que poderia precisar.
Ela consegue checar o desempenho financeiro da empresa, saber os salários de seus colegas e visualizar anotações compartilhadas de todas as reuniões — mesmo as que não compareceu. Ela tem reembolso ilimitado para livros e recebe uma bolsa anual de US$ 1 mil para desenvolvimento.
A profissional tem um “colega de função”, que a ajudou a entender sua posição, e um colega para ajudá-la a se conectar com a cultura da empresa. E sua empregadora, a Buffer, permite regularmente discussões a respeito do que acontece fora do ambiente de trabalho. “Fiquei surpresa e feliz com tanto apoio e recursos disponíveis”, afirmou Cummings, que seis anos atrás hesitava em entrar numa empresa que funciona completamente de maneira remota. “É uma das culturas mais fortes que já vi, e não estamos em um mesmo escritório.”
Julia é uma das muitas trabalhadoras empregadas por empresas que funcionam totalmente em modo remoto desde sua criação.
Enquanto muitas empresas migraram para o trabalho híbrido, cerca de 36,5 milhões de pessoas nos Estados Unidos trabalhavam remotamente pelo menos cinco dias por semana no início de agosto, de acordo com a pesquisa Household Pulse, do Departamento do Censo.
À medida que os diretores desenvolvem políticas pós-pandêmicas, uma preocupação a respeito de trabalho remoto emerge com frequência: uma empresa é capaz de construir uma cultura e mantê-la se os funcionários trabalham remotamente?
Empresas que já trabalhavam em modo remoto anteriormente à pandemia afirmam que isso não só é possível, mas também proporciona flexibilidade adicional, mais produtividade e uma vantagem competitiva na contratação. Mas criar uma cultura de trabalho remoto requer mudança de mentalidade, criatividade e intencionalidade, afirmam empresas que funcionam nesse modo.
Para interações sociais, a Buffer — que emprega 84 pessoas em 27 países — concede uma ajuda mensal para seus funcionários trabalharem em espaços de coworking ou cafés. A empresa oferece um guia de boas maneiras para garantir que textos não sejam mal interpretados. E estabelece pares entre funcionários de diferentes seções para chats semanais de 30 minutos por meio do aplicativo automatizado Donut, na plataforma Slack.
“É possível em um ambiente remoto construir aquele mesmo tipo de energia (do escritório), mas é necessário mais esforço”, afirmou a diretora de operações de negócios da Buffer, Jenny Terry. “Não dá para esbarrar com as pessoas no corredor — nossos corredores são o Slack.”
A definição de cultura varia. Alguns funcionários sugerem sua existência no sentido de pertencimento organizacional e na forte conexão com colegas. Outros afirmam se tratar de uma série de crenças e valores compartilhados, que guiam decisões. Alguns a definem como uma coisa intangível, descrita como a alma da empresa. Mas o que está claro é que a cultura desempenha um importante papel no sucesso da empresa, afirmam os trabalhadores.
O impacto na cultura é uma razão pela qual algumas empresas rejeitam o trabalho remoto. Diretores se preocupam com a possibilidade da cultura se dissolver imediatamente, os funcionários se desconectarem e o trabalho ser prejudicado.
Eles acreditam em uma certa magia e criatividade que só pode haver no trabalho presencial. E certamente nem todas as empresas conseguem funcionar remotamente, em razão da natureza de suas atividades.
Mas desde a pandemia, mais empresas passaram a oferecer vagas remotas. Twitter, Salesforce e Slack, o aplicativo de troca de mensagens da Salesforce, agora mantêm trabalhadores permanentemente remotos. Os funcionários do Airbnb podem trabalhar remotamente de qualquer lugar do mundo.
O GitLab, uma plataforma de desenvolvimento de software que tem mais de 1,7 mil funcionários, em 65 países, afirmou que o trabalho remoto chegou para ficar, então as empresas deveriam promover flexibilidade.
Para encorajar amizades pessoais, no início de cada trimestre o GitLab oferece aos funcionários um “estímulo para se juntar”, que fornece US$ 50 para refeições, transportes e atividades que envolvam colegas de trabalho.
A empresa também oferece US$ 1 mil para funcionários viajarem com quatro colegas ou mais. O primeiro funcionário do GitLab, Marin Jankovski, usou essa ajuda uma vez para comparecer ao casamento de um colega.
“Isso criou uma conexão especial para mim com o GitLab”, afirmou ele. “Foi uma ação intencional para encorajar relacionamentos fora do ambiente de trabalho.”
Para promover transparência, o GitLab fornece aos funcionários uma cartilha de 2 mil páginas em constante evolução, destinada a servir como um documento pesquisável para responder às perguntas dos funcionários.
O texto inclui recomendações a respeito de como os funcionários devem se comunicar, tanto em termos de suporte como de etiqueta, tópicos departamentais e até informações que os funcionários poderiam desejar saber a respeito de seu diretor-executivo, Sid Sijbrandij, incluindo seu estilo de comunicação, seus defeitos e como conseguir entrar em contato com ele.
O GitLab afirmou que também documenta de tudo, desde decisões para projetos de atualizações até discussões em reuniões, para servir como referência pública para seus funcionários. “É preciso haver uma fonte única de verdade”, afirmou a diretora de recursos humanos do GitLab, Wendy Barnes. “Para que não haja medo de ficar de fora.”
Mas Jankovski, que vive em Amsterdã, admite que a transparência não vem facilmente. Nos dias anteriores à criação do GitLab, Jankovski reuniu-se remotamente com os cofundadores da plataforma para um projeto e todos documentaram juntos os passos seguintes.
“Tivemos esse momento de clareza, de deixar as coisas por escrito, (para) ver o próprio entendimento e o dos outros”, afirmou ele.
Na Zapier, que emprega mais de 700 funcionários em 41 países, os trabalhadores conversam regularmente sobre hobbies nos vários canais de “diversão” do Slack, e a empresa paga passagens aéreas para funcionários viajarem para encontros duas vezes por ano. Danny Schreiber, um experiente gerente de operações de negócios, afirmou que promover intencionalmente oportunidades para os colegas se conhecerem pessoalmente ajuda com o trabalho em ambiente remoto.
“Se conheço a entonação das pessoas, sua maneira de falar e seu senso de humor, isso aumenta a produtividade”, afirmou ele a respeito de encontrar-se presencialmente.
CEO da Automattic, empresa conhecida pelo sistema de administração de conteúdo WordPress, Matt Mullenweg, mantém uma equipe remota há mais de uma década. A Automattic estabelece pares de funcionários para videochamadas com base em seus interesses compartilhados. E reuniões da equipe com frequência começam discutindo temas não relacionados ao trabalho.
“Em última instância, estamos dando às equipes autonomia para criar uma cultura que funcione para elas”, afirmou Mullenweg.
O diretor de recursos humanos da Zapier, Brandon Sammut, afirmou que, para o trabalho remoto ser bem-sucedido, uma empresa deve desenvolver sistemas para dar apoio aos funcionários. “O que o trouxe até aqui não o levará para onde você está indo”, afirmou ele.
Para gerentes como Steph Donily, diretora de marketing corporativo da Zapier, isso significou mudar para colocar o foco em resultados, independentemente de alguém precisar dar uma saída rápida no meio do dia para passar no supermercado. Ela afirmou que transmite constantemente expectativas, feedbacks e contextos.
“Em vez de valorizar alguém por trabalhar sentado à sua mesa ou porque (esse funcionário) fez uma observação inteligente na reunião, você tem de gerenciar de maneira diferente”, afirmou ela. “Tenho de garantir que a equipe esteja entregando o que afirma estar entregando.”
Algumas empresas adotaram o trabalho remoto depois de perceber benefícios para os empregados e os negócios. CEO da empresa canadense de softwares gráficos Corel, Christa Quarles, afirmou que isso exigiu alguns ajustes. “Tive de mudar muito a maneira como aplico meu estilo de liderança”, demonstrando interesse nas pessoas e criando oportunidades, afirmou Quarles.
É por isso que a Corel está treinando gerentes intermediários para entender um modelo de liderança com base em resultados. Ela também afirmou que o trabalho remoto a fez reconhecer a importância de articular com clareza os processos e que as reuniões podem ser mais equilibradas com recursos tecnológicos como o chat do Zoom e as funções de “levantar a mão” para pedir a palavra.
Ainda que fomentar a cultura remotamente possa ter desafios, as empresas afirmam que vale a pena. Os funcionários têm mais liberdade, e os empregadores podem acessar um banco de talentos maior, incluindo trabalhadores que querem ou precisam trabalhar em regimes flexíveis.
“Quando você faz a transição para o trabalho remoto, é preciso repensar como construir a cultura”, afirmou O professor da Faculdade de Administração de Empresas de Harvard que estuda o futuro do trabalho, Prithwiraj Choudhury.
Julia, da Buffer, afirmou que, depois de começar a trabalhar remotamente, jamais voltaria a um escritório tradicional.
“Só porque você trabalha presencialmente, isso não significa que a cultura é positiva”, afirmou ela. “O que importa realmente é como a empresa faz você se sentir — se estão respeitando as pessoas enquanto seres humanos e confiando nelas para fazer o que deve ser feito”.
THE WASHINGTON POST/ Estadão – tradução de Augusto Calil