Foram 42 horas de viagem em 770 quilômetros entre São Paulo e Garopaba, no litoral catarinense, em meio aos bloqueios impostos por caminhoneiros bolsonaristas em um ato de teor golpista. Com velocidade média de 18 quilômetros por hora no trajeto, os passageiros de um ônibus interestadual enfrentaram cansaço em meio à incerteza e a ataques promovidos por manifestantes.
Dos 25 passageiros, apenas 10 seguiram no veículo até o fim da rota. Entre eles, um casal de idosos, um homem com suspeita de fratura na clavícula após um tombo pouco antes do embarque e duas crianças, de 8 e 4 anos.
Foram cinco bloqueios e duas longas paradas, onde os passageiros conviveram com angústias e dores físicas em uma viagem que parecia não ter fim. Em alguns momentos, os passageiros ficaram ilhados, mal hidratados e sem alimentos. Nos trechos bloqueados, manifestantes passavam entre os veículos para oferecer frutas, sanduíches, leite e água.
Um casal de idosos precisou lidar com dores nas articulações e problemas de saúde em decorrência do longo período de viagem.
“O momento mais difícil foi porque uso remédios manipulados para artrose e artrite. Muita dor. E muito frio também”, relatou o aposentado Manoel Nicolau de Araújo, 69.
“Foi muito sofrido. Nunca tinha feito uma viagem assim na vida. Passamos por momentos de sufoco e precisamos lidar com dores. A sensação é de que estávamos abandonados”, completou Maria Vanda Nicolau de Araújo, 62. Esposa de Manoel, ela também teve de lidar com dores no joelho esquerdo, inchado devido ao longo período de parada. O casal viajou para visitar as filhas no interior catarinense.
Um passageiro viajou a base de medicamentos por causa de uma suspeita de fratura na clavícula. Pouco antes de embarcar, quando ainda estava no Terminal Tietê, em São Paulo, ele escorregou e caiu de costas sobre uma cadeira.
Dores se intensificaram em meio a bloqueio. As dores se intensificaram durante o primeiro bloqueio. Foram mais de nove horas de paralisação entre a noite de segunda-feira (31) e ontem de manhã em Embu das Artes (Grande São Paulo),
Segundo ele, o momento mais crucial foi quando precisou enfrentar o frio na madrugada de hoje nas imediações de Curitiba, capital paranaense, quando o termômetro marcava 8 graus de temperatura.
A viagem foi interrompida ali por decisão do motorista após ouvir a informação de que estariam ocorrendo saques em meio a um bloqueio em uma região serrana. Os passageiros dormiram dentro do veículo.
“A dor aumentou e não tinha remédio suficiente. Agora, vou direto ao pronto-socorro, para ver se houve alguma fratura”, contou Arnaldo Timóteo Lima, 36, que trabalha em uma gráfica em São Paulo e viajou para visitar um amigo em Santa Catarina.
Caminhoneiros agem como se fossem a lei nas rodovias. O primeiro bloqueio, em Embu das Artes (SP), só interrompido após muita negociação com policiais rodoviários federais e com os próprios caminhoneiros bolsonaristas, que agiam como se fossem a lei nas rodovias.
“Estou em um ônibus com crianças e idosos. Quem aqui pode nos ajudar a sair do bloqueio?”, perguntei.
“Fala com aquele homem ali. Ele que está no comando.”
“Quem? Aquele?”, perguntei apontando para um outro policial rodoviário federal que conversava com um dos manifestantes.
“Não, aquele”, respondeu o agente. O policial rodoviário federal não se referia ao colega de profissão. Para ele, quem “estava no comando” era o manifestante, um dos líderes dos caminhoneiros.
Caronas para seguir viagem. Em quatro ocasiões, passageiros deixaram o ônibus. No primeiro bloqueio, em Embu das Artes (SP), duas passageiras desistiram da viagem e chamaram um motorista de aplicativo para retornar à capital paulista.
Em outros dois casos, foi preciso pedir auxílio aos motoristas de carros de passeio nas rodovias. Ontem à noite, três pessoas pegaram carona para Balneário Camboriú (SC) e outras três foram para Joinville (SC).
Hoje de manhã, próximo a um bloqueio em Itajaí (SC), outros três passageiros pegaram carona com moradores até a rodoviária da cidade. E houve até intercâmbio de passageiros, com pessoas embarcando em outro ônibus com destino a Florianópolis, próximo a outra paralisação. Assim, foi possível seguir viagem sem que fosse necessário entrar na capital catarinense, reduzindo o tempo total do trajeto.
Medo em SC. O ônibus só chegou hoje de manhã em Santa Catarina, onde havia o receio de novos bloqueios, o que acabou se concretizando.
Em um bloqueio próximo a Joinville, um manifestante com o rosto coberto por uma bandeira do Brasil avisou ao motorista para que não “mandassem mais ônibus” para a rodovia, porque os bloqueios irão se intensificar nas próximas horas.
Ele estava ao lado de outro homem enrolado em uma bandeira do país, que agia como se fosse fiscal de trânsito, orientando a circulação de veículos em uma pista de acesso, enquanto os carros no sentido contrário aguardavam. Em um momento, um policial militar foi ao local. Mas quem dava as ordens eram os manifestantes.
Faixas em alusão a Bolsonaro e “Lula ladrão.” Em uma ponte que cruzava a rodovia, havia uma bandeira do Brasil e faixas. Em uma delas, se lia: “Deus, pátria, família e liberdade”, lemas constantemente repetidos pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), derrotado nas urnas para Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno das eleições presidenciais.
No meio da pista, havia outra faixa, onde estava escrito: “Lula ladrão.”
Mensagem golpista em tenda. Em uma tenda ao lado, havia voluntários, que distribuíam alimentos para os ocupantes dos veículos por ali. O local era decorado com uma mensagem de teor golpista em uma faixa, onde se lia: “resistência civil, intervenção federal.”
Havia ainda um veículo capotado na BR-101 bloqueada para caminhões e muito entulho na pista.
“É Bolsonaro, né?” Ao se aproximarem do condutor do ônibus interestadual, onde estava a reportagem do UOL Notícias para entregar um café, os manifestantes questionaram: “É Bolsonaro, né?”
Esse tipo de postura se repetiu sempre que havia contato entre os passageiros e os caminhoneiros.
Uma passageira do ônibus de 25 anos, piercing no nariz e com cachecol vermelho disse ter sido ironizada e intimidada ao se aproximar dos manifestantes.
“Vem pro lado de cá. Ninguém vai fazer nada contra você. Faz o ‘L’ aí”, disse um dos manifestantes, segundo ela.
Depois de ter sido “acusado” de ser petista por usar cabelo comprido, outro passageiro disse ter evitado sair do ônibus.
Promoção de bandeira do Brasil. Um posto de conveniência em Balneário Piçarras às margens da BR-101 faz promoção para vender bandeiras do Brasil em meio aos bloqueios feitos por caminhoneiros bolsonaristas.
Em frente ao balcão, está estendida uma das peças. Vendidas por R$ 19,90, as bandeiras saem por R$ 9,90 para quem consumir R$ 50. O estabelecimento fica próximo a um bloqueio.
Questionados, funcionários negam relação entre a oferta e as paralisações. Segundo eles, a promoção foi motivada pela Copa do Mundo do Catar, que começa a partir do dia 20 deste mês.
Mais à frente, a reportagem do UOL Notícias ainda cruzou com uma grande mobilização em um acesso a Balneário Camboriú, onde havia uma tenda com mensagens golpistas ao lado da rodovia.
Apesar dos relatos de endurecimento dos bloqueios, foi possível, enfim, chegar ao destino final. É encontrar uma tarde ensolarada. Depois de 42 horas cinzentas por rodovias onde a lei eram golpistas reivindicando intervenção militar por se negarem a aceitar o resultado das urnas.