A ideia de vida remonta, inevitavelmente, ao empenho por viver, amalgamado ao gozo que se encontra por se estar no mundo, aventura que cada um elabora e coloca em prática do jeito que mais lhe apetece. Trocando em miúdos, poder-se-ia definir como vida a sequência de especulações, sem controle e avessas a métodos, quanto ao que o homem deseja e furta-se a desejar, movimento pleno dos retrocessos e avanços e altos e baixos que a vida mesma simboliza tão bem. Perseguimos sonhos aparentemente inexequíveis não apenas pela vontade atávica de ir contra a corrente e provar-se único, muito diferente de todo o resto da pedestre humanidade que teima em nos rodear, mas porque sabemos que as chances de o alcançar são mínimas. Afrentando a lógica, o racional quase nunca se nos mostra instigante o suficiente, não nos encanta, não consegue, enfim, cavar espaço num cérebro tomado por um labirinto, que se bifurca, se afunila e se aprofunda por pensamentos os mais passionalmente absurdos. Como não sabe querer, no momento mesmo em que manifesta uma vontade qualquer, a natureza humana já lança por toda parte a semente da destruição, o que encaminha-nos a uma clara inferência: deve-se repudiar toda vontade e todo desejo, mormente os revestidos da grandeza fantasiosa que nos ilude sem cerimônia com suas vãs promessas de felicidade, a fim de sonhar o sonho possível da felicidade terrena, miragem no deserto que mais de nós se distancia quanto mais julgamos tê-la ao alcance dos dedos.
Não é raro que tenhamos de abdicar das muitas comodidades da vida pós-moderna para que consigamos nos voltar para o que pode haver de mais trivial na essência de cada um. Incumbimo-nos da tarefa quase sempre com boa medida de sacrifício, de dor até, uma vez que todos aqueles aparelhos e dispositivos que terminam por nos encarcerar em casa chegam a se tornar uma extensão de nossos corpos sedentários, convenientemente mudos diante de telas gigantescas, sofás majestosos, comida farta, saborosa e pouco saudável à mão. Enquanto essas urgências puderem ser supridas, nenhum receio desponta no horizonte carregado das humanas incertezas, malgrado o espírito, junto com o corpo, se ressinta e se revolva, deixando-se tomar pela insânia, até o momento em que resta pouco a ser feito além de se arvorar em verdadeiro dono do próprio arbítrio e ter a coragem de tomar outra rota. Essa viagem para dentro da própria natureza, único lugar em que se ouve o rugido das feras que em nós vivem, tem seus lances atordoadores, mormente no começo, mas se feita com boa vontade, tirando-se as pedras de sobre o coração, se encarada como uma profissão de fé em si mesmo, de confiança de que o medo pode, sim, ser a força vital e transformadora que nos dá razão para seguir tentando, o mundo fora de nós passa a ser, também, um outro paraíso.
Poucos filmes na história do cinema aliaram tramas marcadamente pessoais ao objetivo poeticamente didático de dizer verdades. Jean-Jacques Annaud vai muito além do filme de aventura e do filme sobre homens comuns, que erram e, ao termo de um processo visivelmente custoso, doído, aprendem e reparam suas faltas o quanto podem. “Sete Anos no Tibet” escapa com galhardia ao clichê das narrativas hagiográficas que endeusam falsos heróis, praga que assola a indústria cinematográfica de tempos em tempos. Aqui, tem-se a vida como ela é, em todos os seus movimentos mais furiosos, arrefecendo aqui e ali diante dos contragolpes do destino.
O roteiro de Becky Johnston tira da autobiografia de Heinrich Harrer (1912-2006) os elementos que lhe permitem dispor o corpo da história em três partes irregulares, conferindo a cada uma a importância que considera justa. Annaud introduz Harrer como o playboy inconsequente que abandona Ingrid, a mulher grávida, interpretada por Ingeborga Dapkunaite, para tornar real o delírio — tão viável quanto perigoso — de escalar o Nanga Parbat, a nona montanha mais alta do mundo dos Himalaias, a cadeia de picos gigantescos do planalto tibetano. Como a direção de arte de Claude Paré deixa claro, Harrer não é nenhum santo: na estação de trem (sempre elas!) em que o alpinista austríaco embarca para a Índia, de onde trilharia quarenta quilômetros a pé até o Paquistão, estão dispostas como troféus as bandeiras com suásticas negras em fundo vermelho. Em 29 julho de 1939, quando tenta chegar ao topo do Nanga Parbat, Hitler está a pouco mais de dois meses de declarar guerra ao resto do mundo em nome de suas idiossincrasias hediondas. Harrer era um membro do partido nazista desde 1933, e o plano de subida da montanha era uma estratégia do facínora quanto a difundir no Oriente a superioridade ariana. Como se sabe, o intento do montanhista — e, felizmente, o nazismo — resultaram frustrados.
Na segunda parte, a mais caudalosa, está o sal do texto de Harrer e Johnston. Logo no início do segmento a relação com Peter Aufschnaiter (1899-1973), de um David Thewlis que decerto poderia ter dado um protagonista muito melhor — não fosse a necessidade de honrar o orçamento de setenta milhões de dólares contratando um astro bonitão para o papel central —, parece querer degringolar em agressões físicas ou mesmo homicídio, mas os dois, claro, terminam por se entender. Na virada do segundo para o terceiro ato, quando Harrer torna-se o confidente do Dalai Lama do Tibete, reencarnação de Sidarta Gautama e chefe político-religioso do território, abre-se a perspectiva do conflito com a China, quando da ascensão de Mao Tsé-Tung (1893-1976), o Hitler deles, apenas arranhada.
Filme: Sete Anos no Tibet
Direção: Jean-Jacques Annaud
Ano: 1997
Gêneros: Drama/Aventura/Ação/Biografia
Nota: 9/10