Ainda que tenhamos conquistado uma visibilidade considerável, porém longe de ser completa, a comunidade LGBTQIA+ continua sendo rodeada por diversos preconceitos e estereótipos acerca da orientação sexual e de seu lugar no mundo. Através de comentários pejorativos e defesas de teses bastantes refutáveis, é comum notar essa postura partindo de grupos fundamentalistas, defensores da “família tradicional” e dos “bons costumes e valores” quando, na verdade, se valem de preceitos bastante datados e basicamente religiosos para respaldarem sua visão de mundo estreita e conservadora. O problema é quando isso acaba por interferir na autoaceitação dos membros dessa minoria social, levando-os compulsoriamente a enxergarem a si mesmos como aberrações da natureza.
É justamente disso que o filme de Joel Edgerton procura analisar. ‘Boy Erased’ é uma trágica e envolvente história de superação e dor baseada em fatos reais e que tem enfoque em um jovem garoto de dezenove anos, membro de uma comunidade evangélica em Arkansas, um dos estados mais tradicionalistas dos Estados Unidos. Ao se assumir gay para os pais, ele é inconscientemente forçado a buscar pela “salvação divina”, deixando que seus pais o coloquem em uma espécie de escola para conversão sexual, tentando repô-lo no caminho da luz e salvar a família da “destruição iminente”. Entretanto, diferente de tantas outras narrativas já tematizadas com essa premissa, essa parte de uma perspectiva bem mais humanizada, focada em seu protagonista e não nas pessoas à volta dele. E, também diferente do que estamos acostumados a assistir, é a crueza de seus fatos que torna a narrativa comovente e catártica.
Lucas Hedges faz seu retorno para as telonas depois de ganhar notoriedade em ‘Manchester À Beira-Mar’. Porém, ao contrário da personalidade evasiva e rebelde de Patrick, encarnar Jared Eamons mostrou-se como uma tarefa relativamente mais difícil. Controlando-se dentro de uma bolha, construída pela reputação de seus pais, pela necessidade de ser o filho perfeito, membro do time de basquete, cristão ferrenho, visando a uma carreira brilhante – tudo isso se esvaindo dos seus dedos após acontecimentos inesperados o lançarem em uma verdade para a qual não estava preparado.
O filme, entretanto, não segue uma cronologia linear, e sim vale-se de idas e vindas entre o presente e o passado para ajudar na construção do caráter dos personagens e fornecer mais dinamismo a seus arcos. Hedges percebe que não é “normal”, cuja palavra parte de uma concepção talhada pela comunidade em que vive, quando não se sente confortável em transar com sua namorada do colégio. Tais dúvidas tornam-se mais perturbadoras quando ele entra para a faculdade e é estuprado pelo colega de quarto, o qual o força a entregar-se e a assumir uma identidade a que não estava pronto para abraçar e que ia de encontro a todas as morais que seus pais lhe ensinaram. Ele eventualmente é confrontado pela mãe, Nancy (Nicole Kidman) e pelo pai, o pastor da congregação Marshall (Russell Crowe), e é a partir daí que ele percebe que nunca teve apoio de ninguém, mas sim pessoas que se preocupam mais com o que os outros pensam do que aquilo que realmente importa.
A história já ganha proporções viscerais logo no primeiro ato, em que Edgerton traz o enfoque em Jared chegando à escola reformatória e conhecendo outros garotos e garotas que “transgredem a ordem natural do mundo”. Logo nas primeiras cenas, cada um dos personagens diz a si mesmo que precisa da salvação, ainda que não necessariamente acreditem naquilo, e submetem-se a ridículas humilhações arquitetadas pelo terapeuta mental do programa de conversão, Victor Sykes (Edgerton novamente). “Homens devem ser masculinos e mulheres, femininas” é a frase que permeia as sequências nas quais os adolescentes devem reprimir quem realmente são em prol de não se tornarem a vergonha de suas famílias – e o diretor acerta em cheio ao trazer um variado elenco para compor a narrativa, contribuindo para nos conectar dos mais diversos modos às personas.
De qualquer forma, Hedges e Kidman são os nomes que mais merecem atenção, seja pelas cenas-solo ou nas que contracenam juntos. Ambos trazem uma química irretocável para as telonas como mãe e filho, como duas peças de um mesmo quebra-cabeça que precisa ser “consertado”. Entretanto, ainda que Nancy mostre-se triste com o anúncio da sexualidade do filho, ela percebe a infelicidade nos olhos de Jared a cada nova vez que o vê e, em determinada sequência, sente vergonha de si mesma por tê-lo submetido àquele programa. É aqui que a genialidade do roteiro reside, trazendo uma redenção por parte dos pais sem colocar-lhes como vítimas e sem tirar o protagonismo do garoto – Jared e Marshall inclusive trocam verdades de tirar o fôlego na penúltima cena da obra.
Edgerton faz um bom trabalho com a direção, buscando elementos já vistos em dramas de época para uma realidade não tão distante – afinal, a história se passa nos primeiros anos da década de 2000, em uma comunidade para no tempo e que nos arremessa para um período em que os tabus circundavam a comunidade LGBTQI+. Só que esses mesmos tabus são explicitamente colocados como parte da terapia, cultivando no público (pelo menos em uma grande parcela) um sentimento de ódio e de frustração sobre como a preocupação com a vida alheia ainda consegue destruir as pessoas. É partindo desse pensamento que a estética claustrofóbica e prisional prepondera, seja em cenas nas quais os personagens conversam por detrás de cercas, seja pela sutileza em que esse mesmo elemento aparece em outras sequências.
Até mesmo a paleta de cores segue essa perspectiva, colaborando junto à fotografia difusa e onírica dos primeiros atos, que entra em contradição com a atmosfera tensa entre os Eamons, perpassando pelos tons pastéis até culminar em uma alegórica sobriedade angustiante que dialoga diretamente com a aceitação final do herói, terminando seu coming-of-age de forma digna, ainda que respalde em convencionalismos. Aliás, as fórmulas obviamente existem para tapar alguns buracos, mas são ofuscadas pelo peso performático do elenco.
‘Boy Erased: Uma Verdade Anulada’ é um grito de desespero que arranca lágrimas até dos mais céticos e fornece uma nova camada para os dramas epopeicos da autoaceitação. Mesmo com resoluções previsíveis, é a inaceitável verdade que fala mais alto e choca, com razão, espectadores que ainda não conhecem o lado mais sombrio da história.