A vida é mesmo um mistério, e circunstâncias inexplicáveis — e não raro sinistras — sempre hão de sobrepujar a jornada de cada um em algum momento, até com uma frequência intolerável, insana, misturando tudo ao caos que faz com que o existir pareça imerso numa substância untuosa que interdita qualquer movimento, dando a impressão de que a realidade cedeu lugar a uma condição muito específica, como se um sonho, longo, extenuante, que suga as energias de quem dorme e tenta, em vão, manipular aquelas imagens a seu gosto. Ao se dar conta, enfim, de que está encarcerado a memórias de que deveria livrar-se — malgrado jamais pudesse —, de que sua história até ali, em maior ou menor medida, há de manifestar alguma influência sobre os rumos que toma agora, de que está a reboque dos desmandos de seu próprio pensamento, no labirinto nebuloso de sua cabeça tão instável, cabe ao homem apenas convencer-se de que viver é mesmo a cornucópia de delírios que lhe parecia desde tenra idade. O que não tem explicação, o que não tem nome, muito do que a razão não alcança pauta a narrativa dos dez filmes que compõem a lista, à disposição do assinante da Netflix, elencados de acordo com o ano de lançamento mais recente e por ordem alfabética, dissecam, quase de forma literal, esse caráter predatório do homem, caçador de sua própria espécie, lobo em pele de lobo.
Encurralados (2023), Onur Saylak
Um casal decide se afastar de Istambul para escapar de um escândalo, então tentam recomeçar a vida em uma nova cidade. Mas logo que chegam ao novo endereço, descobrem que os moradores vão fazer de tudo para se livrar deles.
Excluídos (2023), Nathaniel Martello-White
Um thriller social que narra a história de Neve, uma mulher negra e pobre que, insatisfeita com sua vida, decide deixar o marido e os filhos para recomeçar do zero. Quase vinte anos depois, agora casada com um homem branco, moradora de um bairro de classe média alta e com dois filhos exemplares, tem tudo que sempre sonhou. Até que dois estranhos aparecem no bairro trazendo o passado que tanto lutou para deixar para trás à tona.
Luther: O Cair da Noite (2023), Jamie Payne
Uma continuação épica em longa-metragem da premiada série “Luther”, um assassino em série aterroriza Londres, mas o brilhante detetive John Luther está atrás das grades. Assombrado por seu fracasso para capturar o psicopata cibernético que agora o desafia, Luther decide fugir da prisão para terminar o trabalho custe o que custar.
Na Palma da Mão (2023) Tae-joon Kim
Voltando para casa, Na-mi perde seu smartphone com todos os seus dados. Jun-yeong encontra o aparelho, mas instala um spyware antes de devolvê-lo à dona. Com o programa, ele começa a seguir os passos da garota e aprender tudo sobre ela, como os locais que frequenta, hobbies, preferências, trabalho, finanças e redes sociais, e se aproxima sem revelar sua verdadeira identidade. Na-mi fica aliviada ao reaver seu telefone, mas sua felicidade dura pouco: logo, uma reviravolta macabra a faz perder o controle de sua vida.
O Rei das Sombras (2023), Marc Fouchard
Adama perdeu a visão ainda criança. A morte inesperada de seu pai traz à tona conflitos familiares latentes com o meio-irmão Ibrahim, considerado uma figura carismática no bairro. Quando Ibrahim embarca em uma espiral de violência e caos, a estabilidade de Adama começa a ruir e, para salvar as pessoas que ama, ele vai precisar bater de frente com o meio-irmão e encarar seu destino.
O Desconhecido (2022), de Thomas M. Wright
“O Desconhecido” (2022) é um filme singular. Evitando abusar da violência, Thomas M. Wright, o diretor-roteirista, escancara situações do expediente policial que o público leigo nem sonha serem possíveis. Tentando encontrar alguma resposta minimamente sensata que aponte uma justificativa para a degradação moral em que mergulhamos todos há algum tempo, Wright compõe uma narrativa ligeiramente farsesca, entre a sátira e o ensaio, sobre policiais que fazem o que lhes autoriza a lei — ou seja, muito pouco — na intenção de levar a cabo a investigação de um assassinato. Uma vez que se dão conta de que observar todos os ritos legais é, mais do que inútil, contraproducente, um deles em especial aposta a última ficha, numa manobra arriscada que pode redundar em derramamento de sangue, começando pelo seu. O texto de Wright prima pela sutileza, mas nunca se deixa levar pela ambiguidade fácil. Aqui, ninguém fica muito bem no papel de mocinho; entretanto, cada personagem desempenha o papel que dele se espera, sem muita margem para grandes tergiversações.
O Enfermeiro da Noite (2022), de Tobias Lindholm
Os incontáveis golpes com que nos assalta o destino vêm em boa parte sob a forma de apuros de saúde, sem a qual pouco se pode fazer e contra os quais é mister lutar. Ganhar a vida com o suor do próprio rosto, com trabalho, honesto, digno e capaz de absorver-nos de tal maneira que esquecemos das questões fundamentais e inadiáveis que nos atormentam em segredo, é um princípio imperioso pelo qual se guia toda mulher e todo homem que se pretende admirável, nem que seja para si mesmo. No fundo, é disso que se trata “O Enfermeiro da Noite” (2022), a história de um assassino em série devotado, que foi deixando um rastro de mortes ao longo de mais de sete anos, mas principalmente o tributo a uma mulher singular. O diretor Tobias Lindholm é hábil em manipular o foco do espectador para uma direção e, aos poucos, fazê-lo notar a grande personagem que deixa a o segundo plano e ocupa o centro do roteiro de Krysty Wilson-Cairns, baseado no livro homônimo de Charles Graeber sobre um evento melancolicamente verídico.
O Pálido Olho Azul (2022), de Scott Cooper
“O Pálido Olho Azul” sobrepuja o básico da narrativa de suspense. Socorrendo-se de elementos técnicos, Scott Cooper tem o condão de ressuscitar o interesse por um dos mais ousados escritores de todos os tempos, ao passo que escapa ao óbvio escolhendo fixar-se nos detalhes que seduzem sua audiência, seja pelo olhar, seja pelo que é dito. A impecável fotografia de Masanobu Takayanagi dirime qualquer dúvida quanto as pretensões de Cooper, transportando o espectador para o cenário, tão aterrador quanto lindo, do Vale do Hudson, nas imediações da Nova York de 1830 durante um inverno rigoroso, que se encarrega de tornar o clima especialmente lúgubre.
Um Marido Fiel (2022), Barbara Topsøe-Rothenborg
Christian e o Leonara são, aparentemente, um casal perfeito. Eles têm um filho que acabou de se curar de uma doença grave e agora o futuro parece brilhante novamente. Durante uma festa da empresa de Christian, Leonara vê o marido com uma moça mais jovem e pressente que ele irá deixá-la. Se sentindo injustiçada, já que Leonara sacrificou sua carreira e desistiu de tudo para cuidar do filho doente e de sua família, ela decide tomar medidas extremas contra Christian. Mas ele também tem planos misteriosos contra a esposa.
Um Lugar Silencioso 2 (2021), de John Krasinski
O roteiro de “Um Lugar Silencioso”, escrito pelo próprio diretor, John Krasinski, em parceria com Bryan Woods e Scott Beck, se baseia numa família, em que Krasinski dá vida a Lee Abbott, o pai, uma figura inicialmente marginal na trama, mas que ganha espaço à medida que a história toma corpo. Junto com a mulher, Evelyn, interpretada por Emily Blunt, e os três filhos, Marcus, personagem de Noah Jupe, Regan, vivida por Millicent Simmonds, e o mais novo, de Cade Woodward, Lee tenta sobreviver no que restou do mundo depois da invasão de criaturas extremamente violentas que deram cabo de boa parte da população da Terra, tendo de também adotar um hábito essencial para tanto: fazer o máximo de silêncio de que forem capazes, uma vez que esses predadores impiedosos são dotados de uma audição muito superior à humana, o que lhes permite chegar ao local exato em que se escondem suas presas ao menor ruído que façam. Servindo de prequel e de extensão do filme que apresenta os Abbott e sua agonia escatológica, “Um Lugar Silencioso: Parte II” faz questão de frisar o argumento da invasão do planeta por monstros intergalácticos adicionando pouca novidade à história central, mas apostando alto nos efeitos especiais da equipe comandada por Charles Cooley e na edição de Michael P. Shawver, além de bisar a parceria entre Krasinksi e seus dois corroteiristas.
A Ligação (2020), de Lee Chung-hyun
Que o cinema sul-coreano vai muito bem, obrigado, ninguém pode negar. Essa tendência tem se cristalizado desde 2019 com o lançamento de “Parasita”, para o bem-estar do mercado e a felicidade do respeitável público. No instigante “A Ligação”, Lee Chung-hyun reúne mistério, ação e uma boa pitada de elementos sobrenaturais para deixar o espectador de cabelo em pé e com a pulga atrás da orelha. Este é “o” filme para quem topa fazer algumas concessões à lógica e ficar preso no sofá.