Rachel Aviv tinha uma dieta normal para crianças americanas, farta em pizza, frango e cereais, quando do nada parou de comer. Ela nunca tinha ouvido aquela palavra antes, anorexia, e achou que parecia o nome de um dinossauro. Era um diagnóstico que lhe foi atribuído aos seis anos, o que fez dela a caçulinha na ala do hospital infantil onde ficou internada por seis semanas, em 1988.
Seus prontuários não apontavam uma razão clara para sua recusa em se alimentar. Uma psicóloga viu reflexos “da patologia na relação entre ela, a mãe e o pai”. Outra, uma tentativa de “olhar para dentro de si a fim de entender sentimentos intensos”, que resvalava numa “atitude autocondenatória”. “Embora essa descrição pudesse ser aplicada a quase qualquer pessoa”, Aviv repara, os médicos decretaram anorexia nervosa.
Ela é hoje uma jornalista da revista The New Yorker que dedicou boa parte da trajetória profissional a histórias de pessoas marginalizadas nos cafundós da saúde mental. Reúne cinco delas em seu primeiro livro, “Estranhos a Nós Mesmos – Histórias de mentes instáveis”. O título, eleito um dos dez melhores de 2022 pelo jornal The New York Times, é agora lançado no Brasil pela Zahar.
O primeiro capítulo, dedicado ao passado da autora, introduz um debate sobre a complexidade do que entendemos por transtornos mentais, bem como a jornada ora daninha, ora salvacionista para enquadrá-los em algum rótulo psiquiátrico.
A certa altura, Aviv se pergunta quais sentimentos prévios a habitavam antes de um diagnóstico tão forte, que poderia ter forjado sua identidade. “A experiência original”, escreve sobre o seu caso e tantos outros, não pôde ser “compreendida por si mesma e pouco a pouco se tornou algo que não vinha totalmente de nós”.
Quando tal etiqueta chegou a ela, a anorexia era, por assim dizer, uma doença da moda. Não que as pessoas nunca tivessem deixado de comer antes, inclusive muitas jovens religiosas o fizeram em tempos medievais. O jejum extremo era uma forma de emular o sofrimento de Cristo, e seus corpos esquálidos viravam símbolo de fé e pureza.
Aviv conta que, internada com garotas mais velhas, adquiriu no hospital todo um repertório de comportamentos anoréxicos, como o pânico de ser sedentária. Aprendeu com as adolescentes a fazer polichinelo à noite para gastar as calorias forçadas pelas enfermeiras de dia. Sentiu-se como “uma trainee em anorexia”.
Ela voltou a comer ao perceber que, assim, era premiada com o direito de receber a visita dos pais. Até a meleca que tirava do nariz voltava para dentro, tão obcecada estava com a ideia de não perder uma miligrama que fosse.
Teve alta, e seus pais não embarcaram na recomendação médica de continuar o tratamento. A mãe lhe sugeriu não contar aos colegas da escola detalhes da temporada hospitalar.
Fosse hoje, talvez lhe dissessem que tinha algum distúrbio alimentar não ligado à imagem corporal, especula. “Fui ‘recrutada’ para a anorexia, mas a doença nunca se tornou uma ‘carreira’. Não me forneceu a linguagem com a qual vim a compreender a mim mesma.”
As palavras que escolhemos —ou que escolhem por nós— para nos expressar nem sempre dão conta do recado, diz. Ela cita um ensaio em que o psicólogo William James argumenta que a ciência idealiza um “sistema de verdade fechado” e, convenientemente, descarta quadros arredios a essa coleira epistêmica.
São vivências que “se desenrolam em épocas e culturas variadas, mas têm um cenário em comum: os confins psíquicos, as periferias da experiência humana, onde a linguagem geralmente fracassa”, afirma Aviv. Daí sua opção por selecionar histórias de quem usou a escrita para “superar o sentimento de incomunicabilidade”. Os personagens do livro mantiveram diários, poemas e outros relatos autobiográficos.
“Queria incorporar ao máximo as vozes das pessoas sobre as quais escrevia”, a autora diz à Folha. “Elas podiam falar no presente sobre o que lhes aconteceu anos atrás, mas eu queria reconstruir o que aconteceu com mais textura. O jeito que você descreve uma crise mental hoje, uma semana ou cinco anos depois pode ser muito diferente. E pode ser influenciado pelas conversas que você teve com médicos.”
Contextos sociais também importam na narrativa psiquiátrica, como mostram as páginas sobre Bapu, uma indiana diagnosticada com esquizofrenia. Sua devoção fervorosa ao deus hindu Krishna, que a fez fugir de casa, era desprezada por médicos ocidentalizados. Um a chamou de “feia” feito uma bruxa.
Bapu questiona um monge por que “os homens podem ir embora, deixar a família e viver como mendigos, e as mulheres, não”. Depois registra em seu diário: “Para a alma que encontrou deus, não há gênero”.
Classes sociais diversas compõem a obra de Aviv. Há Ray, outrora carismático médico que tão bem simbolizava o sonho americano, transformado numa carcaça do que já foi. Ele processa um hospital de elite avesso ao canto da sereia farmacológico, numa época em que antidepressivos e afins se popularizavam. O caso ficou conhecido como o “Roe vs. Wade” da saúde mental, num embate entre a turma que apostava nos remédios e a que preferia uma abordagem psicanalítica.
O livro volta a esse ponto algumas vezes. Não recai na fórmula fácil de condenar um lado e condecorar outro, mas não deixa de sublinhar que “a loucura se tornou um produto industrializado”, como diz o antropólogo Alistair Donald num texto que compara a psiquiatria americana à rede de lojas Walmart.
“Delírios não são tecidos a partir de pura fantasia”, diz Aviv. “Seria impossível dissociar o desejo que Bapu tinha de desposar Krishna de sua consternação com o modo como as esposas eram tratadas nas famílias indianas tradicionais, ou a obsessão de Ray por justificar o fracasso de sua vida de sua expectativa de que homens brancos instruídos não deviam ter de lidar com um destino assim.”
Naomi, outra perfilada, é uma mulher negra que cresce num conjunto habitacional onde “tiroteios eram naturais como neve caindo”. A infância pobre lhe nutre com coisas tipo Engasgado (pão com um salsichão tão seco que todos tossiam ao ingeri-lo) e a certeza de que negros não são bem-vindos.
Já adulta, ela se joga num rio com seus gêmeos bebês. Supreme vive, Sincere morre.
Mais que uma doente mental, Naomi é fruto de uma sociedade em que, como diz bell hooks, a psicoterapia raramente é considerada “um lugar de cura útil para afro-americanos”.
Há ainda Laura, descendente do ex-presidente Franklin Roosevelt que não consegue encontrar paz mental entre os bailes de debutante e as festas de Harvard que frequenta. Neste capítulo ficamos sabendo que um quarto das americanas brancas tomam antidepressivo —enquanto os negros em geral não têm a devida atenção psiquiátrica, os brancos do país são hipermedicados.
Nos anos 1970, as pacientes femininas eram alvo preferencial da indústria farmacêutica, que alertava sobre a moça nervosa que talvez nunca se case. Um anúncio do Prozac trazia uma mulher branca, com aliança visível, e o slogan: “Para noites repousantes e dias produtivos”.
Não dá para saber de antemão “como um diagnóstico vai ser internalizado na identidade de alguém”, e às vezes, em vez de capturar uma realidade, eles “mudam a imagem que temos de nós mesmos”, diz Aviv. “Existem histórias que nos salvam e aquelas que nos prendem em uma armadilha, e no meio de uma doença pode ser dificílimo diferenciá-las.”