“Pode ser sem anestesia?”, perguntei ao meu cardiologista. Nosso relacionamento tinha acabado de ser “promovido”, como ele mesmo colocou: eu finalmente aceitara considerar deixar ele fazer (assim mesmo, quatro verbos seguidos) a ablação cardíaca com a qual havia sete anos ele tentava me convencer a concordar. E como ele já me conhecia havia sete anos, ele respirou fundo, fechou os olhos, balançou a cabeça devagar enquanto fez aquela cara de “ai meu saquinho, como tratar neurocientista dá trabalho” e aquiesceu.
Sim, ele podia enfiar cateteres pela minha virilha para registrar a atividade elétrica no interior do meu coração, estimular eletricamente batimentos conforme eles quisessem durante o procedimento, mapear a excitabilidade do coração para então descobrir e cauterizar, com outro eletrodo, as vias supernumerárias que estavam esculhambando meus ritmos cardíacos e causando ataques de taquicardia que me deixavam fora de circulação pelo resto do dia quando eles aconteciam. Com meus filhos já adultos, troca de casa encaminhada e querendo começar minha vida nova de recém-casada (yay!) sem riscos de ter que descobrir o pronto-socorro mais próximo do outro lado do mundo nas minhas viagens a trabalho, aceitei o procedimento —desde que eu não precisasse de anestesia geral.
Que fique claro: acho anestesia geral uma das maravilhas da ciência, que possibilita cirurgias transformadoras que de outra forma seriam impensáveis. Mas já ouvi de todos os colegas que estudam anestesia que eles mesmos recusavam anestesia sempre que possível, por causa dos riscos não-nulos de danos cognitivos e outras sequelas —inclusive confusão mental extrema ao acordar. Esta parte da anestesia geral ainda é um jogo de roleta russa: a única maneira de descobrir como se reage à anestesia é passar por ela.
Não só eu não queria o risco como estava excitada em fazer parte do processo. Se alguém vai se divertir experimentando com meu coração, eu quero fazer parte da brincadeira também, oras. E, de quebra, fazer anotações em primeira pessoa: de que outra forma eu descobriria qual é a sensação de cutucarem meu coração por dentro?
A anestesiologista e sua equipe foram uns amores e concordaram em aturar a neurocientista de plantão acordada, apenas com um opioide para aliviar a dor —e eu ganhei três horas de experiência ímpar para minhas aulas.
Por exemplo: agora sei que a única sensação de cateteres passando pelas veias é pressão pelo lado de dentro da pele. Meus vasos e coração não sentem nada, pois não possuem mecanoreceptores. A queima das três dúzias de sítios do lado direito do meu coração, essas eu senti —mas não como dor no peito, no lugar do coração em si, e sim como a dor de um dedo enfiado com toda força logo abaixo da minha clavícula direita.
Chama-se “dor referida”: na falta de uma referência sensorial —pois que outra sensação temos no coração, para servir de âncora?—, o cérebro atribui a dor ao vizinho mais próximo nas vias sensoriais, o que, no caso do lado direito do coração, é o ombro direito. Meu coração não fica no ombro, mas é lá que ele dói.
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