O ano que vem promete: se nada der errado, a primeira psicoterapia apoiada por psicodélicos (PAP) deverá ser autorizada nos Estados Unidos. Dali se espalhará pelo mundo, aliviando os traumatizados, deprimidos ou meramente infelizes, e os anos 2020 marcarão a reentrada dos alteradores de consciência na medicina oficial –se nada der errado.
Virá enfim a superação da década de 1960, que começou com Timothy Leary experimentando cogumelos alucinógenos e LSD e terminou com o guru lisérgico preso por posse de entorpecentes. Os anos 1970 veriam erguer-se o vagalhão da Guerra às Drogas, arrastando para as profundezas do obscurantismo qualquer benefício legalmente possível dos psicodélicos.
É curioso esse hábito mental de compartimentar a história em períodos discretos, os anos 60, 70, 20… Acaba de sair uma coletânea da MIT Press que põe essa mania em perspectiva: “Expanding Landscapes – A Global History of Psychedelics” (paisagens em expansão – uma história global de psicodélicos), editada por Erika Dyck e Chris Elcock.
Os 20 capítulos do volume, incluindo um dos historiadores brasileiros Henrique Carneiro e Júlio Delmanto, deixam patente que a psicodelia não começou na década de 60, nos EUA, e nem mesmo na de 50, com “As Portas da Percepção” de Aldous Huxley. Existem evidências arqueológicas de que a mescalina a abrir a mente do britânico já teria sido usada, com o cacto peiote, uns 6 mil anos antes.
O mesmo valeria para a dimetiltriptamina (DMT) da ayahuasca, 4.700 anos atrás. E a psilocibina dos fungos Psilocybe, bem 4 mil anos antes de Gordon Wasson publicar seu relato na revista Life, em 1957, sobre “cogumelos mágicos” em uso pelo povo mazateca do México.
Espera-se que essa rica (pré-) história não seja eclipsada de novo pela crônica dos anos 2020. A década presente de fato merece algum destaque, desde que seja identificada como caudatária de uma longa tradição de expansão química da consciência.
O ano de 2023, ora em seus estertores, viu Austrália e Canadá abriram portas –estreitas, vá lá– para uso terapêutico de psicodélicos. Abrigou ainda a maior conferência psicodélica de todos os tempos, atraindo mais de 12 mil interessados a Denver, no Colorado.
Poucos meses antes, em novembro de 2022, esse estado norte-americano aprovara a descriminalização das chamadas “medicinas naturais” (psilocibina, DMT, ibogaína e mescalina) para uso pessoal. A mesma lei prevê autorização, a partir de 2024, de centros de tratamento (até 1º de junho de 2026, apenas com psilocibina).
A legislação tem semelhanças com a do Oregon, também aprovada por referendo de iniciativa popular, votada dois anos antes, em 2020. A regulamentação foi então detalhada, e em 2023 começaram a funcionar os primeiros centros de “facilitação”, que a lei manda não se confundir com terapias psiquiátricas ou psicológicas.
Todas essas substâncias permanecem proibidas no plano federal. Daí pode surgir o primeiro percalço, como alerta o médico e jurista Mason Marks, da Universidade Harvard, em artigo de 8 de dezembro no JAMA, periódico da Associação Americana de Medicina.
Ele argumenta que a confusão com práticas médicas e psicoterápicas já acontece nos dois estados, que estariam em rota de colisão com instâncias federais. Isso porque a alegação de benefícios terapêuticos, por exemplo na propaganda de facilitadores licenciados, abriria um flanco para autuações de agências como FDA (fármacos) e DEA (drogas).
Mesmo que saia em 2024 a autorização da FDA para tratar transtorno de estresse pós-traumático com psicoterapia auxiliada por MDMA (ecstasy), como se espera, Marks alerta que a DEA só deverá tirar da lista de substâncias proibidas o composto de grau farmacêutico, não qualquer bala à venda para baladeiros.
Em seguida poderá ser a vez da psilocibina ser aprovada. Mas, também neste caso, sairão do famigerado Schedule 1 só as formulações usadas nos testes clínicos, como COMP360 da empresa Compass Pathways, não os cogumelos que legaram o princípio ativo à medicina. Os facilitadores do Oregon, que só têm licença para administrar o produto natural, seguirão sujeitos a sanções federais.
Trata-se, é óbvio, de uma injustiça com quem presta o serviço e com os eleitores que aprovaram a Medida 109 em 2020. Mais ainda, uma injustiça com os mazatecas e todos os povos que descobriram, selecionaram, cultivaram e preservaram esses organismos, assim como tantas plantas de poder, até os séculos 20 e 21.
Como de hábito, a biomedicina ocidental de proceder como se toda descoberta emanasse somente dela. Tome-se o caso dos fungos Psilocybe: muita gente terá ouvido falar de Gordon Wasson (1898-1986), o dublê de banqueiro e micologista que viajou a Huautla e ingeriu teonanácatl pelas mãos de Maria Sabina, mas quem saberá quem foi Gastón Guzmán (1932-2016)?
Li sobre ele num texto da filha Laura Guzmán Dávalos, depois de saber que dividirei uma mesa com ela no 10º Congresso Brasileiro de Micologia, de 19 a 23 de fevereiro em Belo Horizonte. Micologista como o pai, ela narra como ele teve contato com Wasson na aventura do americano entre os mazatecas e se tornaria um prolífico pesquisador de fungos, tendo descrito mais de 220 espécies, 15 delas novas para a ciência.
Foi um dos maiores especialistas em cogumelos “mágicos”, mas o nome do mexicano não aparece em volumes de história da psicodelia, como deveria, ao lado do ianque Wasson. É a ilusão de perspectiva comum entre os que se acham no centro de tudo, em geral uma grande cidade dos EUA ou da Europa: realidade histórica e conhecimento válido só ganham cidadania universal quando se tornam objeto de publicação em periódicos editados em inglês.
Analogamente, a notoriedade adquirida pela contracultura norte-americana dos anos 1960 obliterou não só a história profunda das investigações psicodélicas ao longo de milênios, muito antes da colonização da América por europeus. Também ficaram esquecidas as pesquisas clínicas e terapias experimentais com psicodélicos como o LSD da década de 1950, conduzidas nos próprios EUA e outras paragens.
O LSD teve presença até no Brasil, rememoram Carneiro e Delmanto no capítulo 16 volume de Dyck e Elcock. Sintetizado no laboratório suíço Sandoz, o ácido lisérgico era distribuído para pesquisadores e médicos do mundo todo para que experimentassem com a nova droga, e por aqui o LSD encontrou uso em psicoterapia e estudos por médicos como Murilo Gomes e Clóvis Martins
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No entanto, quando se comenta a psicodelia em território nacional, são a contracultura tardia dos anos 1970, o desbunde e o tropicalismo que vêm à mente. Os estudos e terapias das décadas de 1950 e 1960 permaneceriam no esquecimento, não fosse o trabalho minucioso de Júlio Delmanto no livro “A História Social do LSD no Brasil”.
Ainda assim, há boas chances de os anos 2020 se tornarem conhecidos como ápice do chamado renascimento psicodélico. As coisas de fato estão a acelerar-se, e, se nada der errado, alguns passos portentosos serão dados até o final da década.
A bem da verdade, não se trata nem mesmo de um renascimento, pois os psicodélicos sempre estiveram por aí. Se renascem, é só para a perspectiva estreita da biomedicina, aquela em que as coisas ainda podem dar errado.
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AVISO AOS NAVEGANTES – Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.
Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem “Cogumelos Livres” na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.
Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira”.