Já fui internada seis vezes em clínicas de reabilitação. Todas por períodos curtos, só para uma desintoxicação. A primeira foi, sem dúvida, a mais marcante. Era muito difícil aceitar que eu precisava passar por aquilo. Eu bebia em excesso e isso preocupava as pessoas ao meu redor. Só que nunca havia passado pela cabeça de ninguém a possibilidade de uma internação. Até que não teve outro jeito.
Minha doença acelerou de uma forma absurda depois dos 27 anos. Hoje sei que é progressiva. Em uma tarde que estava reclusa na casa da minha mãe, encontrei uma garrafa de gim e bebi toda ela em menos de 20 minutos. Para justificar o efeito do álcool, menti dizendo que estava me adaptando ao novo remédio.
A clínica era em São Paulo, em uma casa com cara de avó. Fiquei uma semana e um dia com mais alguns doentes mentais, mas nenhum alcoólatra. Conheci pessoas que sofriam de esquizofrenia, bipolaridade, ideações suicidas, adicção por morfina, entre outras patologias. Foram dias angustiantes, não só pela situação em si, mas porque meu primeiro sobrinho estava prestes a nascer e eu não queria ficar longe da família nesse momento. Eu já me sentia bem fisicamente no segundo dia de internação e queria ir embora. Mas a previsão era passar pelo menos uma semana ali.
Meu irmão ia me ver —ele e meu pai foram os únicos que me visitaram— e dizia “cuida da sua recuperação, o bebê ainda não vai nascer”. Lembro que na época ele me levou um livro com uma seleção de crônicas que tinham saído na revista Playboy e o presente foi barrado. Ele entrou rindo, meio sem graça. O livro de crônicas não tinha nada a ver com o conteúdo da revista, mas não passou pela triagem. Achei bonito ele lembrar de me levar um livro e fiquei com um misto de tristeza e raiva quando soube que não chegaria a mim.
Meu maior desafio era me acalmar no isolamento. Não recebia notícia de nada, não sabia o que se passava com minha mãe, irmã e todos os demais. Aí eu conheci o Nestor, enfermeiro que cuidava do turno da noite. Ele percebeu minha aflição e veio conversar. Sempre encontrei um anjo dentro de cada uma dessas internações. E ele, sem dúvida, foi um deles.
Nestor era doce, mas firme. Não poupou carinho, tampouco sermões: Você não estava bebendo muito lá fora? Consegue lembrar dos momentos em que esteve com sua mãe, com seu irmão e a cunhada que estava grávida? Agora você chora pela possibilidade de se privar de um parto. Será que se você estivesse lá fora veria esse parto ou estaria alucinando pela cidade? Aquilo me caiu como um raio. Mas foi bom. Importante para me dar uma chacoalhada e pensar que ele tinha um ponto. Muito provavelmente, se não tivesse internada, não estaria por perto no momento do parto.
Hoje é Natal, sei que muitos alcoólatras devem estar internados com uma sensação de fracasso e tristeza (pelo menos foi o que senti), muitas famílias dilaceradas pela ausência daquela pessoa. Dói muito porque não é um tratamento preciso. A internação não é garantia de que tudo vai melhorar. Conheço bem essa angústia, acontece muito na doença da adicção. Um dia meu médico me disse: Alice, é uma das doenças mais difíceis de se ter e de se tratar, por isso você precisa acreditar em mim.
A partir daquele dia, as coisas mudaram. Comecei a encarar meu tratamento de um outro modo. Não é uma medicina exata. Depois do que o Nestor me disse lá na clínica, eu aceitei mais a minha condição de interna. Hoje não fico mais afastada das pessoas que amo, mas estou ciente de que me deram por um caso perdido por muito tempo, foram muitas tentativas em vão. Ninguém, nem eu, pensava que eu poderia voltar a ser uma pessoa “normal”, viver tranquila e deixar minha família em paz. Mas deu certo. E se deu certo para mim, dará para qualquer pessoa, é o que digo sempre em sala de AA. Minha promessa de tempos melhores é assegurada com meu exemplo.
Acho que quem passa por isso precisa aceitar e acreditar nos dias que se seguem. Outros natais virão, outros momentos importantes vão ser vividos com todo mundo junto. Não foi por mal que minha família me internou, por mais que tenha recebido críticas severas de pessoas bem próximas. Além de tudo, a sociedade não lida bem com a doença que eu e milhares de pessoas temos. O resultado disso é medo da exposição e do julgamento. Mas eu estou aqui, livre do álcool, livre das internações, só por hoje. E por isso dedico esta coluna a todos que estão passando por essa situação neste dia.
Quando estava escrevendo a coluna, o meu melhor amigo de AA me mandou uma mensagem comentando o texto da semana passada e me confidenciou que passou uma madrugada de Natal no hospital, que estragou geral a festa. E hoje ele é uma pessoa linda, que me ensina muito. Para mim é muito importante bradar que há chance mesmo quando as luzes todas parecem estar apagadas. Natal é uma data marcante? É. Mas no fundo é só mais um dia de luta para um alcoólatra e seus familiares. É preciso muita força, muito carinho e muito amor.
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