Acreditei por muito tempo que eu era uma pessoa melhor alcoolizada. Foi um dos mitos que criei para justificar minhas bebedeiras. Com certeza eu fui alimentando essa ideia por tudo que via ao meu redor, sobretudo em propagandas, filmes, séries… Quando observava as pessoas bebendo e sendo felizes, socializando, achava tudo muito sedutor e libertário. Aquilo me parecia o máximo e muitas vezes eu repetia cenas da ficção para testar. Era lindo no começo. Nem sempre foi um desastre.
Os drinks lindos, coloridos, me seduziam, pareciam uma obra de arte. É bem verdade que muitas vezes foi de fato divertido… Mas então, bem sorrateiramente, a bebida foi me destruindo. Senti os primeiros efeitos ruins com os primeiros porres, os primeiros vexames, as primeiras vezes que me perguntaram: Você se lembra do que fez ontem? O álcool destrói lenta e legalmente as pessoas em plena luz do dia e em todos os lugares. É legal nos dois sentidos: é permitido e dá certo status.
Estou lendo um livro ótimo da escritora Rosa Montero, “O perigo de estar lúcida”, em que ela cita as questões alcoólicas de vários artistas. “O álcool é a desgraça maior dos escritores, sobretudo durante o século 20. Dos nove prêmios Nobel de literatura norte-americanos nascidos nos Estados Unidos, cinco foram alcoólatras desesperados, entre eles Ernest Hemingway e William Faulkner.”
Sempre gostei de ler e de pensar como ocorre a criação. Daí hoje me dou conta de tudo que esses dois, só para ficar no exemplo do livro, atravessaram durante a vida para nos deixar clássicos como “O velho e o mar” e “O som e a fúria”. “A bebida realça a sensibilidade. Quando bebo, minhas emoções se intensificam e as coloco em conto. Os contos que escrevo quando estou sóbrio são idiotas…”, disse Scott Fitzgerald, que morreu aos 44 anos em decorrência de problemas causados pelo alcoolismo.
Não sei se a produção artística se enriquece se a pessoa beber. Não sou do ramo e por isso talvez não tenha lugar de fala, mas sou alcóolatra. E sei que tudo que faço é melhor se estou sóbria. A loucura (boa, aquela que as pessoas prezam) é a lucidez, cada vez mais estou certa disso. É gratificante experimentar sensações e depois lembrar delas, sem precisar me anestesiar. O autoconhecimento vai me proporcionando experiências únicas e memoráveis. Sinto tudo com mais intensidade, seja o prazer, seja a dor, e isso me faz crescer.
Postei no Instagram do blog o vídeo do ator Anthony Hopkins comemorando seus 48 anos de sobriedade, completados no início desse ano. O próprio Matthew Perry fala em seu livro das mancadas que deu alcoolizado e das grandes sacadas que teve em sã consciência.
Essas pessoas são ídolos de muita gente, muitas vezes queremos ser iguais a eles. Funcionam como espelho. Exemplos de famosos que se expõem, que revelam ser alcoólatras e frisam que a doença não é brincadeira me ajudam muito. E tenho certeza de que a muitas outras pessoas também. Hopkins fala: “Procure ajuda!” de uma forma tão carinhosa, com uma piscadinha, que toda vez que eu vejo eu choro. É inspirador.
Vi recentemente um episódio do programa Assim Como a Gente, comandado pela Fátima Bernardes. Ela entrevistava o Fábio Assunção e o Felipe Camargo, que falaram da adicção e da sobriedade. Quando eu já tinha meu pé no alcoolismo mas nem sabia, acompanhava os boatos sobre os dois e sempre me dava vontade de entrar em contato e passar uma força (que eu nem tinha!).
No programa, eles falam da dificuldade da exposição e do vício. Das histórias que a mídia contava a respeito da vida deles. Foi especialmente legal pra mim o momento em que Felipe fala da humildade que temos que ter, nós, alcoólatras, para admitir que perdemos o jogo. É isso. Não dá, tem uma hora que é preciso jogar a toalha. Não existe meio alcoólatra.
Igualmente emocionante é o depoimento do cantor Nando Reis à revista piauí sobre suas questões com o álcool. Ele fala de peito aberto de tudo que o alcoolismo e a adicção causaram em sua vida. No ano passado fui a um show maravilhoso dos Titãs e ele me pareceu incrível ali, tocando e sem aditivos.
Mas é isso. Cresci entendendo que beber era uma coisa boa, relacionada a alegria, a festa. Que “os grandes heróis morreram de overdose”, com todo respeito ao Cazuza. Na minha cabeça, os heróis morriam assim. Tudo bem morrer dessa forma, me parecia legal, a pessoa ficaria imortal.
Bem, então eu fico me perguntando até quando o alcoolismo vai acabar com a vida de grandes artistas —não só artistas, evidentemente, mas de seres humanos legais, inteligentes, sensíveis. Todos os dias perdemos muitos para as drogas. E acredito de verdade na frase que sempre ouço em salas de AA: o álcool é o chefe da quadrilha. No meu alcoolismo ativo, eu podia beber até me acabar, afinal era só álcool, nunca usei nada ilícito e isso me dava tranquilidade. Não estava fazendo nada errado. E com as minhas bebedeiras eu fui parar num lugar sinistro, tive alucinações e até um surto psicótico.
É difícil aceitar a doença e falar a respeito dela, não são todos que conseguem e/ou querem se expor. Eu mesma não comento com pessoas próximas sobre o que se passou comigo. Já tentei algumas vezes e nem todos compreendem. Por isso só falo com quem possa me compreender. Por isso, sinto tanta admiração pelas pessoas que falam de sua condição abertamente. Talvez não por escolha pessoal, mas por serem pessoas públicas. O próprio Fábio Assunção disse que quando tentou tratamento em grupo de AA, na saída tinha um paparazzi capturando fotos dele, transformando aquele momento íntimo em uma notinha de sites de fofoca. A crueldade não tem mesmo limite.
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