O frio que congelava meus dedos me fez interromper o texto para ir pegar meu moletom felpudo de estrelas gigantes que comprei recentemente. Em recuperação, gosto de pijama, de conforto. Não tinha nada disso quando bebia. Quer dizer, pijama até que tinha, mas como ia dormir quase sempre bêbada, nem dava tempo de vestir.
Na ativa, costumava ficar largada em um balcão de bar, me aquecendo com a bebida. Hoje não. Estou com uma calça xadrez de veludo, uma meia grossa que meu amigo mineiro me trouxe de um país europeu e uma malha. Mesmo com todo esse arsenal, o frio me incomoda. Levanto e pego uma mantinha para estender sobre as pernas. Resolvo esquentar água para um chá! UM CHÁ!
Ligo a televisão para ver alguma coisa. O frio não estava colaborando para eu conseguir avançar no meu texto. Logo de primeira, a Netflix me oferece “Goyo”. Gosto da sinopse e vou em frente.
Me identifico com esse rapaz chamado Goyo, que trabalha num museu de arte e se apaixona por uma funcionária recém-contratada. Não sei desde quando ele tem esse emprego, mas deve ser há um bom tempo, o suficiente para que ele conheça de cor cada detalhe dos quadros e guie os visitantes apresentando não apenas as obras, mas também a história de cada artista, em detalhes. Esse acúmulo de informações deixa a entender que Goyo tem TEA, ou seja, transtorno do espectro autista. Mais exatamente, síndrome de Asperger, com a qual ele é diagnosticado. Uma das características, como se sabe, é ter uma inteligência e uma memória fora do normal.
Entendo que o alcoolismo é uma doença mental. Jogo no mesmo time de Goyo. Tenho dificuldade no amor, mas ao mesmo tempo vivo tendo paixões platônicas. Os doentes mentais compartilham um denominador comum, que é a sensibilidade extremada e a dificuldade com as emoções.
Somos diferentes, nos destacamos dos outros. Acredito que seja a diferença que assusta, incomoda, dá trabalho. Sobretudo quando ela é quase imperceptível, como no caso do alcoolismo. Se eu não bebo e controlo minha doença, ninguém diz que carrego tanto problema dentro de mim. Consigo não deixar transparecer nada. Mas os problemas estão aqui. Por uma série de razões, silencio a doença.
Goyo não tem esse controle. A gente percebe, pelo menos no filme, que se trata de um rapaz com questões muito particulares, isso é visível. Ele não consegue esconder, e acho que nem tenta, pois não tem consciência delas. E, além da própria dificuldade, há o entorno, principalmente os familiares, que ficam sem saber como agir com alguém nessas condições.
Meus familiares sofreram muito com meu alcoolismo, e acredito que em diversos momentos se sentiram como os familiares de Goyo: impotentes. Não bastasse lidar com a doença, eles ainda têm de entender como funciono. Por que me emociono tanto com questões aparentemente banais? Por que tenho tanta dificuldade com coisas corriqueiras?
Penso muito na minha família. Para além da empatia, eles precisam cultivar uma paciência gigantesca. Será que somos capazes de fazer nossas próprias escolhas? Será necessário ter sempre alguém ao lado para intervir e acompanhar nosso caminho? Ao longo da vida inteira?
Demorei para entender que o álcool me fazia muito mal e tropecei bastante, caí, me machuquei. E ainda devo conviver com a minha depressão, que às vezes dura mais do que seria razoável e me faz duvidar da minha capacidade de viver sozinha. No filme, a inabilidade do doente vem à tona quando Goyo tenta escolher seu próprio destino ao se apaixonar pela colega.
Não tenho respostas, apenas perguntas. Minha única certeza é que, sóbria, pelo menos consigo dialogar e não delegar minha vida a outras pessoas. Percebo que, se estou com frio, é melhor me agasalhar e fazer um chá. Que, se o texto empaca, é melhor dar um tempo à espera de um momento melhor para escrever com calma. A vida não precisa ser sempre complicada.
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