José Afonso da Silva não escondeu a emoção quando recebeu uma homenagem especial durante o ato pela democracia do dia 11 de agosto, realizado na mesma Faculdade de Direito da USP em que se formou em 1957 e onde deu aulas até 1995.
Há muito tempo considerado um dos juristas mais importantes do país, ele se destacou entre as poucas pessoas que assinaram a “Carta aos Brasileiros” de 1977 e a “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros” deste ano: era o mais velho do grupo, com 97 anos de idade.
Com a autoridade de quem já viveu quase um século, ele olha para o passado e diz: “Não testemunhei nada parecido com o momento atual, a não ser certos aspectos da personalidade histriônica e autoritária de Jânio Quadros, que também quis dar o golpe”.
Jânio presidiu o Brasil em 1961; o atual mandatário, Jair Bolsonaro (PL), proferiu tantas ameaças ao Estado de Direito que o manifesto lido no dia 11 somou mais de 1 milhão de assinaturas.
Nesta entrevista à Folha, concedida por email, Silva se manifesta sobre alguns dos debates jurídicos repisados por Bolsonaro e seus apoiadores, como o suposto respaldo da Constituição a uma intervenção militar e a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à pandemia.
Professor aposentado da USP, ele é apontado como doutrinador mais citado no STF e escreveu livros influentes na área do direito constitucional, além de ter sido assessor da Assembleia Constituinte de 1987.
Como o senhor se sentiu sendo homenageado no ato de 11 de agosto? Foi uma surpresa, e me senti profundamente honrado, com uma homenagem durante um evento da magnitude do que estava ocorrendo na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, por onde me formei e onde fui professor titular. E mais, imediatamente o público se ergueu em palmas por muito tempo, acolhendo com entusiasmo as generosas palavras do diretor Celso Campilongo, a quem sou muito grato.
Eu já estava emocionado naquele ambiente, lembrando de meu pai sentado lá em cima na ponta do balcão, orgulhoso do seu filho alfaiate se formando em direito na melhor faculdade do país. Foi muito emocionante, mais ainda quando milha filha veio a mim, chorando de emoção, e, depois, José Carlos Dias veio e me abraçou carinhosamente. As lágrimas vieram à tona. Haja coração!
O sr. é testemunha de quase um século de história do Brasil. O momento político atual é comparável com algum outro que o senhor tenha vivido? Eu nasci bem no meio da década de 1920, quando a República oligarca sofria seus abalos mais fortes com o aparecimento de camadas médias urbanas, que foram abrindo campo ao surgimento de movimentos contrários às oligarquias, com destaque para o tenentismo.
Eram os tenentes das Forças Armadas, especialmente do Exército, que se imbuíram da ideia de que, como militares, eram responsáveis pela sociedade e representantes dos interesses gerais da nação, e por isso lhes cabia a missão de intervir no processo do poder e exigir mudanças nos costumes políticos. Uma tese certamente inaceitável. Mas ali era o sertão de Minas, aonde essas coisas não chegavam.
Só quando vim para São Paulo, aos 22 anos de idade (em 1947), é que pude acompanhar a vida política, já sob o regime da Constituição de 1946, regime muito conflituoso, sobretudo depois que o brigadeiro Eduardo Gomes perdeu a eleição para o Getúlio Vargas (em 1950), quando a UDN, convencida de que não chegaria ao poder pelo voto, e já sob a liderança de Carlos Lacerda, se transformou num partido golpista aliado a alguns militares.
Mas veja a diferença. Não era o presidente da República que fomentava o golpe, era a oposição buscando o poder pela deposição do presidente. Como se vê por esse pequeno apanhado histórico, não testemunhei nada parecido com o momento atual, a não ser certos aspectos da personalidade histriônica e autoritária do presidente Jânio Quadros, que também quis dar o golpe.
Nos últimos anos, têm sido comuns discussões sobre o artigo 142 da Constituição. Segundo uma interpretação, esse dispositivo dá respaldo a uma intervenção militar no Brasil. Faz sentido? Essa interpretação não é correta. Nada no artigo 142 a autoriza. Esse artigo confere às Forças Armadas a função essencial de defesa da pátria e a garantia dos Poderes constitucionais; vale dizer, defesa contra agressões estrangeiras em caso de guerra externa e defesa das instituições democráticas, pois a isso corresponde a garantia dos Poderes constitucionais, que, nos termos da Constituição, emanam do povo. Mas isso não implica intervir em seu funcionamento.
Outra função é subsidiária e eventual, de defesa da lei e da ordem. Subsidiária porque essa função é de competência primária das forças de segurança pública, que compreendem a Polícia Federal e as Polícias Civil e Militar dos estados e do Distrito Federal.
E sua interferência aí, além do mais, depende de convocação dos legítimos representantes de qualquer dos Poderes federais: presidente da mesa do Congresso Nacional, presidente da República ou presidente do Supremo Tribunal Federal.
Outra visão incabível, que andou circulando por aí, é aquela que concebe as Forças Armadas como “poder moderador”. Mas como é possível essa concepção, se as Forças Armadas são definidas no artigo 142 como instituições organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade do presidente da República e essencialmente obediente? Poder moderador é poder independente em face dos demais poderes, e, para tanto, não pode ser obediente nem sujeito a autoridade de qualquer deles.
O presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores criticam o que eles chamam de ditadura do Judiciário, sobretudo devido à atuação do STF. O sr. considera que o Supremo tem extrapolado suas funções? Há dois aspectos a considerar: o daqueles que acusam o STF de ativismo judicial e essas reclamações do presidente Bolsonaro.
A questão do ativismo judicial está relacionada com a função interpretativa dos tribunais. Há um debate já antigo sobre isso, ou seja, sobre quão criativa pode ou deve ser a interpretação feita pelos tribunais. Por isso, a conclusão sobre quão ativista é o STF varia conforme a concepção que cada um tem sobre os limites da interpretação judicial. Esse é o debate legítimo.
As reclamações do presidente se prendem a algo menos comum, que são os inquéritos promovidos pelo ministro Alexandre de Moraes. Mas inusitados também são os fatos que têm dado ensejo a esses procedimentos.
Ocorreram os fatos e a inércia do Ministério Público; o STF e seus ministros, como vítimas, foram buscar no seu Regimento Interno norma que os socorressem, talvez, como alguns especialistas entendem, numa interpretação bastante elástica. Cabe ao plenário do tribunal corrigir, se houver exagero.
No caso do combate à pandemia, o STF acertou ao decidir pela competência conjunta? Sim. É simples. A Constituição diz que cuidar da saúde é de competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Declara que a saúde é direito de todos e dever do Estado, isto é, dever daqueles entes federativos que têm que cuidar da saúde, e esse direito é garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos.
O isolamento social é um modo de realizar essa política social; competência que é cumprida mediante a execução das ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde, integrados no SUS, financiado com recursos orçamentários daqueles entes federativos. Competência comum significa que todos os entes competentes podem executar tudo que é previsto nas competências.
Mas, para evitar superposição de ações, o artigo 198 da Constituição estabeleceu que as ações e serviços públicos da saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com diretrizes ali indicadas, que é o SUS.
Veja que são os estados e municípios que executam as ações e serviços de saúde. Eles é que criam e mantêm hospitais, postos de saúde e outros serviços para o povo. A União não o faz. O SUS confere à União a coordenação e as diretrizes gerais, entre outras ações de caráter geral. Ela o faz por meio do Ministério da Saúde, o que não ocorreu.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, recebeu inúmeros pedidos de impeachment de Bolsonaro, mas não deu sequência a nenhum. Faz sentido o presidente da Câmara ter esse poder? É um poder extraordinário, absoluto e abusivo, incompatível com os princípios democráticos, em prejuízo da oposição. Há que se buscar meios de corrigir essa anomalia.
Segundo algumas pessoas, o procurador-geral da República, Augusto Aras, tem uma postura pouco combativa ou até mesmo omissa em relação a supostos crimes do presidente da República. À luz da Constituição, qual sua avaliação sobre a atuação dele? Não há o que estranhar. Ele foi escolhido fora da lista tríplice organizada pela classe para isso mesmo: fazer o que interessa à autoridade nomeante: o presidente da República.
À luz da Constituição, isso não é para acontecer. Pois o Ministério Público foi institucionalizado para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis com independência e autonomia funcional, em face de quem comete crime, seja quem for.
E se as ações criminais contra o presidente da República devem ser propostas pelo procurador-geral da República e ele não o faz, está se omitindo e prevaricando.
Nos anos 1990, o sr. foi secretário de Segurança de São Paulo e criou mecanismos para reduzir mortes provocadas por policiais. Mais de 20 anos depois, temos inúmeras notícias de ações letais por parte da polícia, entre as quais se incluem chacinas. Por que o Brasil não consegue avançar em relação a isso? É verdade. No primeiro mês de minha gestão, a Polícia Militar matou 30 pessoas. No segundo, fevereiro, matou 29. Chamei o comandante-geral e lhe disse para tirar da rua os policiais que cometiam essas mortes. Ele tirou 200. Em março, mais de 30 mortes.
Então, estabeleci que os policiais que matassem fossem recolhidos para prestar serviços no centro da cidade, mediante acompanhamento psicológico. No mês seguinte, o número de mortes caiu substancialmente, e assim foi durante minha gestão, sem prejuízo da eficiência dos serviços policiais.
Respondo: o Brasil não consegue avançar em relação a isso por falta de vontade política.
Raio-X
José Afonso da Silva, 97
Professor aposentado da USP, é autor de livros como “Curso de Direito Constitucional Positivo” (JusPodivm/Malheiros), que está na 44ª edição, e “Aplicabilidade das Normas Constitucionais” (Malheiros). Na Assembleia Constituinte, foi assessor do senador Mario Covas, então líder do PMDB. Foi secretário da Segurança Pública de São Paulo de 1995 a 1999.